Textos

José Rufino - Aliquid ex memoria deponere
1997

A parte de trás da casa tinha um pátio úmido de tijolos, caprichosamente cobertos com um lodo verde e macio. Era um pátio comprido, interrompido apenas por um enorme cajueiro e por uma lavanderia eternamente molhada e cheirando a sabão de barra. De um lado ficavam as portas da cozinha e da sala de jantar e as janelas de outra sala e dos quartos do fundo, e do outro lado o pátio era acompanhado por um barranco de alguns metros, também coberto de lodo, folhas secas e touceiras de samambaias de folhas prateadas.

Era desse pátio, espremido entre a segurança servil da cãs e os mistérios que se escondiam na parte de cima do barranco, que eu partia para minhas fascinantes excursões. Sozinho ou acompanhado de uma trupe de meninos de engenho, eu seguia como um pequeno e frágil desbravador, uma espécie de naturalistazinho mimado, solto num infinito mundo de perigos reais e imaginários.

Muitas vezes estas excursões não passavam de alguns metros. Bastava uma ravina estranha no barranco, ou um conjunto de grossas raízes de mangueira correndo sobre a superfície do solo coberto de folhas, para que a trupe estabelecesse acampamento. O pequeno território escolhido logo se transformava em um reino miniaturizado. Formigas viravam gigantes impiedosos, aranhas transformavam-se em ferozes monstros ameaçadores e minhocas surgiam como imensas serpentes das profundezas abissais. O lodo de briófitas crescia até se transformar em densa floresta tropical e as folhas das mangueiras caíam como enormes pedaços de céu velho de efeitos avassaladores. Cada grão de areia, cada pedacinho de pau, cada sementinha era examinada cuidadosamente e sua função e hierarquia estabelecidas. Meu olhar, revestido por lentes de aumento de centenas de vezes, sobrevoava tudo em lentos rasantes e era capaz de entrar em minúsculas brechinhas no solo ou nas cascas grossas das árvores seculares. Dentro daquelas fronteiras tudo estava protegido pelo domínio do pequeno senhor.

O tempo parava e o pedacinho de chão ficava isolado do mundo, como se tivesse sido abafado por uma tampa de cobrir bolo. A umidade e as sombras das árvores me apertavam contra o chão fofo, onde eu me aninhava como um molusco de concha fina e branca. Dali eu só saía para alimentar a trupe faminta e suja, com frutas e bolos sorrateiramente carregados da grande mesa da sala de jantar ou para buscar algum mantimento ou matériaprima escassa naquele reino.

Quando a noite se aproximava, as sombras tornavam-se mais ousadas e pareciam querer me apertar demais e eu me apressava em retornar para o mundo das paredes e dos móveis. Outro pequeno reino podia ser escolhido dentro da casa, talvez perto do fogão a lenha, num cantinho da dispensa ou já na cama, entre as dobras do lençol e as primeiras ondas de sono.

José Rufino. Catálogo de exposição no Núcleo de Arte Contemporânea, João Pessoa e Galeria Vicente do Rego Monteiro, Recife, 1997.

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