José Rufino - Desenho Contemporâneo
2018
Descrever, inscrever e interpretar. A exposição Desenho Contemporâneo selecionou trabalhos de artistas brasileiros que dialogassem com uma noção renovada sobre o desenho. Partiu-se da constatação de um fato: a arte contemporânea retoma o desenho como categoria. Mas, o que faz com que chamemos de desenho os objetos apresentados? Com a escolha dos trabalhos, outra questão se enunciara: sobre o que trata tais imagens? Sim, “ser sobre algo” (aboutness) define a propriedade da arte, como conclui Arthur Danto (1).
Hoje, uma compreensão mais ampliada do desenho apresenta sintomas da perda de especificidades entre as categorias das artes. Percebe-se, então, que estamos chamando de “desenho”, obras que, em sua maioria, o reinterpretam. Portanto, nos objetos desta exposição, o desenho se amplia, posicionando-se como descrição, ao configurar uma narrativa, inscrição, quando insere a imagem numa espacialidade e interpretação, ao atribuir sentidos que sintetizem ou criem uma “encarnação de significados” (2).
A predominância da linha gera uma evidente relação entre o visível e o legível, a imagem e a escrita. Visualidade e textualidade descrevem, ao mesmo tempo em que interpretam. Ler é reconhecer uma imagem, “uma estrutura de significância” (3). Além de se definir como objetos, os desenhos desta exposição evocam lugares, rostos, paisagens. Tais imagens transformam-se em narrativas. A narratividade produz um certo desvio entre o que se declara e o que se quer dizer. Os desenhos aqui apresentados tratam, para além das imagens enunciadas, de memória, ironia, erotismo, religiosidade, efemeridade, metalinguagens. Significados, na maioria das vezes, subliminares, metaforizados. Os artistas, então, exercem seu “direito de subjetividade” (4). A arte, com isso, ativa seu estatuto enquanto fábula e ficção.
A textualidade do desenho evidencia-se no trabalho de Erika Verzutti. O objeto apresenta o perfil de uma cidade recortado em papel. A visão panorâmica do lugar é reduzida a uma espécie de maquete planar. As formas perfiladas de prédios criam uma bidimensionalidade, impossibilitando nossa entrada por ruas, veredas. O objeto é forrado de papéis colados, apresentando textos escritos. As palavras, então, quebram a planaridade, nos oferecendo outra camada, nos convidando a ler e, com isso, ultrapassar. Erika instiga a procura de pistas que elaborem o sentido para além da visualidade. Tal desenho descreve a troca de mensagens eletrônicas pela artista para organização de uma exposição. Assim, procuramos o desenho na linha de cada letra, na configuração perfilada de cada palavra e, por último, (ou seria inicialmente?) no desenho linear do perfil de tal paisagem urbana. A arte, aqui, é uma espécie de senha que transfigura a obviedade de uma figura. Cria-se, com isso, uma alegoria gerada por essa “fonte de obscuridade”. Chegamos, então, ao título evocativo do desenho que o inscreve e ao mesmo tempo interpreta o nome da cidade: Liverpool.
Nos desenhos de José Rufino estamos diante da apropriação de fotografias com tamanhos variados. Cada uma delas apresenta uma riqueza nas molduras e na encenação de momentos preguinantes, transformando eventos em memória. A realidade faz-se fragmentária nestes pequenos retratos recolhidos no sertão do Brasil. Assim como no exemplo anterior, a imagem é obstaculizada em sua possível tradução. Não se tratam de retratos quaisquer, mas de objetos que muitas vezes servem como ex-votos aos deuses. O desenho, propriamente dito, é colocado sobre o vidro de cada quadrinho. Em tinta preta, Rufino marca o perfil das figuras, criando uma espécie de segunda moldura para os retratos. A temporalidade deste desenho-instalação é ativada tanto pelas cenas domésticas quanto pelo aspecto carcomido das molduras que parecem ainda estar em processo de decomposição. O conteúdo físico da representação é assombrado pelo não-físico: o tempo, o afeto, a espiritualidade e a morte presente em toda fotografia. Refletimos que os artefatos domésticos expõem seus significados densos cada vez que os perdemos, ou quando se quebram (5). O artista rompe a integridade física dos objetos para que se alcance, enfim, a metafísica da inutilidade, transformando-os em arte.
Victor Arruda também trata, no desenho, da imagem de rostos. Assim como nos retratos apropriados por Rufino, estamos diante de perfis e figuras anônimas. Uma cortina na extremidade direita nos posiciona como espectadores intrusos, quase indesejados. Olhamos, intrigados, as personagens, já que a configuração do desenho parece mergulhá-las num azul onírico, surreal. O cinza dos rostos ativa a noção de anonimato. O desenho descreve os perfis, inscrevendo-os nessa atmosfera teatral. Victor Arruda, em vários outros desenhos, se interessa pelos traços anônimos, dialogando com a linguagem do graffiti e dos escritos íntimos. Nós, como espectadores, ficamos sempre diante da encenação, quebrando a quarta parede que nos revela imagens erotizadas, obscenas, muitas vezes. Mas, é o artista que nos estimula o voyeurismo, abrindo-nos a cortina.
Fetichismo e efemeridade são conceitos evidenciados pelo trabalho de Tonico Lemos Auad. O artista grava, sobre bananas, linhas pontilhadas com agulha, formando um rosto. Com o passar das horas, a ação do tempo ativa o escurecimento das linhas que se expandem, desfazendo, ao final de alguns dias, a figura gravada. Tonico estimula as noções fronteiriças entre o desenho construído e o natural. Alfinetes ganham, ao lado do rosto, presença própria, ao serem espetados no corpo das bananas. Cria-se, assim, um desenho-voodoo. A banana inscreve-se como corpo e fetiche. Entretanto, tal imagem restaura os conceitos com humor. Brinca-se com a simbologia brasileira (República de Bananas) ao mesmo tempo em que se institui, no desenho, sua condição de pensamento mítico e selvagem (voodoo). Sendo arte, tudo se congrega com muita ludicidade.
Procurando, novamente, entender a importância da linha, nos deparamos com Expansão, trabalho de Martinho Patrício. Os desenhos são feitos com linhas sutis, finos traços a lápis sobre o fundo branco do papel. Neste trabalho, Martinho anota, como num diário de campo, o contorno de imagens recolhidas nas ruas de João Pessoa e em outros bairros periféricos. Recria-se uma configuração arquitetônica de cenas efêmeras, como a montagem de barracas no comércio popular. Percebe-se uma urbanização feita pelo uso, pela prática cotidiana, expandindo o traçado da arquitetura oficial. Amplia-se, com isso, o conceito de intervenção urbana, já que as imagens são o registro interpretativo de intervenções feitas pelo artista e por anônimos no decorrer da vida nas cidades. Martinho cria desenhos que retiram o figurativismo e as informações óbvias, reescrevendo geometricamente a paisagem numa espécie de solidão, como nas pinturas metafísicas. No entanto, estamos no nordeste do Brasil, na pletora de cores e geometrias das feiras e mercados.
Diante de Cosmos, desenho de Brígida Baltar, o caráter etéreo da representação é ativado. A artista descreve a paisagem pela escrita de pequenos conjuntos de circunferências. Deflagra-se o movimento de nebulosas. O gesto se reduz ao mais simples ato diante do suporte: riscar. A idéia do cosmos é imediatamente nomeada. Reside na enunciação do assunto, a própria significação da imagem. O desenho repetitivo enfatiza o ato ritualístico, quase como uma recodificação da idéia de artesania e manufatura. Pelo caráter espacial da imagem, a expansão torna-se inevitável. O enunciado do assunto (Cosmos) faz-se como “abreviação de um relato” (6) (movimentos circulares).
Também em Efrain Almeida, a enunciação constitui a própria narratividade. O artista desenha com giz diretamente sobre as paredes. Este ato subverte as noções de permanência e transcendência. Ativa-se a precariedade de uma descrição. Efrain não expõe o registro, mas o próprio desenho. Assim, o simbólico está contido na própria manifestação do gesto. As linhas brancas mimetizam uma vegetação com espinhos sobre a dramaticidade do fundo vermelho. Recupera-se uma certa temporalidade, já que o desenho referenda-se em antigas aquarelas do artista. Mas, agora, a imagem é aberta, em forma de desafio, de ausência, de incompletude.
Neste desenho de Efrain, temos um exemplo sintético do que se pretendera com esta exposição: ativar o desvio entre o visível e o legível, a encenação e o texto. Ainda que distantes da crença expressiva, que considerava a imagem uma tradução do sujeito-artista, tais desenhos deixam entreaberta a noção de “sobreidade” (aboutness) dos objetos contemporâneos. As redes de significado são entretecidas entre a nomeação de uma categoria (o desenho) e sua re-apropriação pelos artistas. Assim, eu poderia redesenhar o texto e a exposição, criar conexões outras para ativar novos sentidos. Embaralhar as linhas para abalar os contornos da semiologia, expondo as fissuras que se inscrevem na poética dos significados e no ato criador que jamais terão governo.
1 - Danto, Arthur. Arte y significado. In: _______ La Madonna Del futuro: ensayos en un mundo del arte plural. Buenos Aires: Paidós, 2003, p. 25.
2 - Idem, p. 26.
3 - Marin, Louis. Sublime Poussin, São Paulo: EDUSP, p. 20.
4 - Groulier, Jean-François. Descrição e interpretação. In: Lichtenstein, Jacqueline (Org.).
A pintura, V. 8. São Paulo: Ed. 34, p. 11.
5 - Danto, op. cit., p. 23.
6 - Marin, Louis, op. cit.