José Rufino - Laceratio
2018
A infalível sirene anuncia mais uma jornada, e aqui estou eu novamente engolindo a fuligem incessante do maldito Gasômetro. Estou preso entre arestas desgastadas, e tudo o que tenho é uma sala de madeira de aspecto roto e cheiro azedo, cercada por basculantes transparentes e portas indiscretas, sempre abertas, e uma meia dúzia de seres quase inertes para comandar. Resta-me a falsa resignação de exercer uma sorte de poder, a partir desse ponto estratégico, de onde posso ver todos dentro da sala e também os que passam lá fora. Poder que é ameaçado apenas por uns memorandos cretinos, que chegam aqui enviados não sei por quem, exibindo superposições de incontáveis impressões de carimbos, umas redondas outras retangulares, azuis ou pretas, muitas vezes borrados por respingos de espirro, impregnados de palimpsestos cerosos, de mãos que passam nem sei por onde e umedecidos pelos suores de braços gordos. Recebo-os carcomidos e esgarçados por vagarem de seção em seção antes de chegarem aqui. Tenho medo e nojo ao recebê-los, mas me esforço para que isso nunca seja descoberto, e por isso me curvo todo sobre o amontoado de papéis, para que não percebam que vacilo e tremo quando assino os cadernos de protocolo. Devo considerá-los como pequenos testes, pequenas ameaças ao que devem chamar de Núcleo Interno de Caudilhismo.
Esses bobos perdem tempo tagarelando sobre meus métodos, já que aqui dentro mando eu e não são suas especulações nem esses memorandos que vão me destruir. Conheço muito bem as regras lá de cima e vim parar aqui há muito tempo, como resultado de acomodações de burocracias tão complexas que nem eles se dão conta da minha real existência. Enviam os tais memorandos, de fato, mas eu não deveria me sentir ameaçado, pois tenho consciência de que já chegam perdidos entre os estratos do poder, exauridos pelo esforço que fazem para me encontrar no fim de uma trajetória extremamente difícil, onde são obrigados a esquivar-se de obstáculos de várias categorias, encontrando interstícios entre máquinas perigosas, que emitem jorros de óleo e fazem movimentos repentinos com suas projeções de contatos fatais, entre os braços quase mecânicos dos torneiros, passando pelos inúmeros corredores, pelos pátios internos e externos, pelas portas enormes que separam áreas de oficinas de áreas administrativas, pelos barulhentos compressores, por perto das afiadas serras circulares e dos projéteis incandescentes das máquinas de soldar e dos cadinhos cheios de matéria quente e viscosa como lava, entre as pilhas de caixas de madeira que guardam peças de reposição, por cima das chapas e retraços de aço, dos amontoados mamilares de escamas oxidadas e outras substâncias ferrosas amalgamadas em corpos desfigurados, das poças negras de óleo, dos trapos embebidos de graxas, dos tambores metálicos, dos corpúsculos formados por retraços salobros, das babas ressecadas, colando coisículas filamentosas e engriguilhadas, dos novelos espiralados que caem do aço torneado, das acumulações estratiformes e onduladas de limalha de várias gerações e por entre os cabos de aço que descem das traves do teto, passando por enormes roldanas, por baixo dos guindastes que se movem como monstros modernos e dos guinchos de carreira, subindo as rampas cheias de graxa e terra e os batentes desgastados, passando pelas portinholas que separam seções para, finalmente, e infortunadamente, chegarem aqui.
Também me preocupo de vez em quando com as cópias de memorandos que ficam por lá, arquivadas, pois posso ver sua marcas nos papéis-carbono, impressas em relevo no verso destes incômodos documentos e fico imaginando que um deles possa ser resgatado em algum rescaldo contábil e que algum filho da puta seja enviado aqui, na condição petulante de auditor. Eu não deveria temer, eu sei. Minhas práticas internas não permitem respostas claras a qualquer tipo de inquérito, aqui estabeleci regras próprias, sem precedentes. Tudo o que se poderá apreender daqui são borrões putrefatos, arruinados por suas próprias existências, feitos para existirem aqui mesmo, por um tempo empilhados nas superfícies caóticas de nossas mesas e depois relegados a planos inferiores nas nossas gavetas. Que sentido teriam estes rabiscos mofados, estas colônias verde-enegrecidas de mofo, avançando contra restos de textos empalidecidos? Que sentido teriam estes papéis milhares de vezes dobrados e desdobrados, esgarçados em metades e metades de metades, irrecuperáveis? Que sentido teriam estes papeis acidificados, de bordas queimadas e quebradiças, capazes de desintegrar-se em miríades de pedacinhos a um leve toque? Que sentido teriam estas notas fiscais grampeadas em maçarocas incompreensíveis, usados como blocos de anotar qualquer coisa? Que sentido teriam estes garranchos de contas coalescentes e superpostas, resultantes de nossas contabilidades imorais, feitas tão intimamente entre mim e meus párias, como brincadeiras de jogo-da-velha, onde trocamos numerozinhos e outros risquinhos de uma mesa para a outra, até que eu chegue à conclusão, olhando para a distribuição dos números em cada conta, dos traços sob os números, da relação entre os traços e as bordas do papel e de todos os elementos riscados com os elementos impressos, que o documento está pronto e imediatamente deve ficar descansando na minha mesa ou de algum subalterno, se for o caso, recebendo depois de algum tempo, quando já perdeu a utilidade, novas interferências, mais involuntárias e esteticamente descompromissadas. E os livros-caixa completamente inchados de tão riscados e manuseados, sem falar que são usados para guardar um papel qualquer que não encontrou lugar apropriado, uma folha recolhida na beira do Guaíba, um guardanapo de papel com bordas de motivos geométricos com anotações feitas em mesa de bar, uma caixinha aberta verde-vermelha de colchetes Universo, umas migalhas de pão e umas formigas espremidas, uma ou outra asa de insetos maiores, umas manchas de café, cinzas de cigarro, pingos de nanquim, muitas sobras de borracha, umas raspas de lápis, uns grudes arrancados da pele de algum de nós, além de cabelos, cílios e pêlos de barba, fragmentos de cutículas, lascas de unha e até bolinhas de meleca. Que sentido teriam então todas estas velhas garatujas a não ser o de ficar aqui mesmo, alimentando nossas necessidades de transitar entre estas pilhas de velhas celuloses, como traças treinadas?
Então fico eu aqui nessa mesa-casa, vislumbrando meu pequeno império, recolhendo imagens fortuitas, roubadas de relance por entre mesas e cadeiras. Apreendo até as sombras deslocando-se lentamente nas paredes de lambri, esticando-se e encolhendo-se à medida que o sol vai se pondo do outro lado do rio, envolvendo o escritório numa atmosfera dourada. Olho entorpecidamente para as coxas brancas da datilógrafa e desenho com a ponta do dedo suas formas arredondadas na poeira da mesa. Vejo por traz o dorso de um dos contadores, e parte do perfil grotesco de sua pança acomodada sobre as pernas. Vejo partes de braços, mãos que caem na frente das mesas, pés que aparecem por baixo, ombros caídos, cabelos e de repente um olhar repulsivo, questionador, uma ponta de nariz, um pescoço e parte de um queixo, um cotovelo apoiado entre pastas-arquivo, dois braços que envolvem uma cadeira por traz, estalando como máquina cansada, uma boca que boceja, uma mão que contorna um joelho e ai faço outro desenho, já num livro-caixa, numa página em branco lá no fim, apagando logo em seguida, deixando apenas um vestígio maliciosamente revelador, para o futuro, para pensamentozinhos libidinosos de quem for preencher esta página. Faço agora desenhos apertados no ar, com a ponta do lápis escondida pela palma da outra mão, sem que percebam crio formas geométricas com movimentos retilíneos que evoluem para outras arredondadas e concêntricas e depois apago tudo, fechando rapidamente a mão, quando me pego quase babando, absorto no emaranhado de traços imaginários.
Às vezes me canso da paisagem da sala e abro disfarçadamente uma das gavetas da mesa, empurrando em seguida a cadeira de rodinhas para trás, para permitir uma visão mais confortável do interior da gaveta. O passeio visual dentro desse pequeno aposento de madeira possibilita um isolamento total dos sons ensurdecedores da Força Motriz e da movimentação interna do escritório. Fazendo o olhar meandrar entre caixinhas de fitas de máquinas Remington (Burroughs 11 mm), com seus motivos gráficos em preto e branco em formato de teia com pequenas margaridas estilizadas, contrastando com grandes círculos vermelhos denteados, com desenhos de máquinas bojudas no centro, encontro montes de caixinhas de colchetes Universo (De Luxe), mais formais e de arestas mais duras, exibindo desenhos do produto em verde e uma faixa vermelha com o nome Universo vazado em branco. Não sei por que tenho tantas destas caixas de colchetes na minha gaveta, raramente uso um deles para agrupar um maço de notas. Enferrujam tão rapidamente, submetidos aos bafos de umidade e maresia golfados pelo Guaíba, que ameaçam até as juntas dos nossos ossos. Esquivando-me das caixinhas Universo encontro maços de envelopes amarrados com cordões, separados por tamanhos, categorias, ano de recebimento e, cá pra nós, pela textura dos papéis, só para formar maços interessantes, uns uniformes, outros misturados e outros totalmente aleatórios. Entre os maços de envelopes acho uns cacos de louça, umas sementes estranhas, uns catoquinhos de galhos, dos que chegam trazidos pela maré, mais umas ruelas e uns parafusos, umas carretilhas e outros troços abandonados. Sinto um rápido friozinho na espinha, um pequeno e passageiro sentimento de culpa, por relembrar que muitos desses objetos eram amostras de peças a serem compradas, documentos a serem encaminhados, sementes que não puderam virar árvores e aí fico pensando em tudo que deixo para trás, esquecido no limbo das minhas gavetas. Logo imagino partindo dos meus olhos uma grande teia, com linhas que se bifurcam como diagramas genealógicos, unindo todos os percursos que estas coisas fizeram até pararem ao meu redor e os rumos que tomariam se eu não as tivesse relegado ao anonimato das coisas rejeitadas pela agonia do cotidiano, obrigando-as a permanecerem por aqui, prostradas como restos mortais quase desmaterializados.