Marcelo Campos - Faustus
2018
“Não se alcança jamais o que não se sente, se não se trespassa a alma” (Fausto Zero – Goethe)
A exposição Faustus, de José Rufino no Palácio da Aclamação, é parte de uma rede de acontecimentos que vêm se desenrolando há um ano. Daniel Rangel convidou o artista a ocupar o Palácio. José Rufino, artista paraibano, iniciou, então, o projeto. O que fazer num palácio situado num cidade cosmopolita, em pleno século XXI?, era a questão inicial. Lá fora, o fausto da paisagem tropical, a Bahia, a brisa nordestina, a suntuosidade da cidade em gentio e edificações. Dentro, a pompa da primeira capital, o fausto do Palácio da Aclamação pleno de decorações, louças, mobiliários. Porém, olhando o palácio vazio, percebemos o silêncio, o deslocamento no tempo e no espaço: “Ninguém pôs a mesa na sala fria, nenhuma cadeira na sala magra”. Havia, para nós, uma espécie de enterramento. Diante deste cenário, Rufino pensou em exumação. O que poderia existir de passado e memória naqueles cômodos luxuosos? Como trazê-los à vida? Ao mesmo tempo, como fugir disso, para não soterrar-se na idolatria de apenas sublinhar, correndo o risco de voltar a guardar, arquivar, patrimonializar. José Rufino buscou, então, o espírito do lugar, ao destacar o fausto do palácio, remetendo-se a um corpo, a um gigante formado de gessos e madeiras. Um esqueleto. Montou, desta maneira, alguém que carregasse tal herança. Gesso e madeira?, eu questionei, é como ter dente de ouro. A arte, então tratou de completar os pedaços. E esta é uma das tarefas da arte, nos fazer sentir a falta, mesmo quando se finge a plenitude. Um palácio finge a plenitude. Decora-se com guirlandas e cenas pintadas, prepara o cortinado, deixa o piano a postos, a mesa pronta, mas para quê? Talvez para esquecer da finitude. Recobrir janelas, portas, escadas com o esplendor dos dourados, dos veludos, dos brocados, ocultando os esqueletos, as estruturas. Faustus, de José Rufino exibe o que o corpo leva para depois da vida.
Como uma atitude polarizada, sempre ficava a ambiguidade, entre a paisagem tropical e o fundo das gavetas enegrecido e empoeirado. Faustus, palavra em latim, significando opulência. Faustus nome do personagem que já começara a se desenhar por uma grande equipe. Fausto, protagonista da literatura de Goethe. As peças, tortuosamente, tentavam o encaixe. Em Fausto, de Goethe, traduzido e interpretado por Fernando Pessoa, Haroldo de Campos, Thomas Mann, entre outros, uma das questões centrais é a busca pelo conhecimento da vida, o desejo de saber por que as coisas são de tal jeito, de entender o mistério universal, o que não foi dito. Fausto declara o tempo todo esta angústia, perdendo a inocência “a jarra está partida e nada valem os fragmentos seus. A imagem do templo está caída, partiu-se”. Um outro personagem, amigo, aparece para tentar destituí-lo desta busca angustiante pelo mistério. Wagner ensina Fausto a buscar as coisas boas, “só vendo o mundo de vez em quando, nos feriados”. Como Macunaíma, de Mário de Andrade, Wagner quer gozar a existência: “O próprio discurso sobre o mundo já é de grande utilidade ao orador”, ao que, Fausto responde: “Que discurso! Só é bom para fantoches”. Wagner interrompe, mostrando a Fausto o “enorme deleite” de transportar-se para o passado, estudando os sábios para percebermos o quanto evoluímos. Fausto retruca: “Meu amigo, os tempos do passado são para nós um livro com sete chaves”.
A arte de Rufino é uma tentativa incessante, voraz, de buscar estas chaves no passado, nos guardados, na poeira do tempo. Nos desgastes das madeiras, nos sulcos, na forma assimétrica, ainda que duplicada por manchas gêmeas, Rufino enxerga a possibilidade de se emergir na relação entre pensamento e forma, memória e esquecimento, louvação e aniquilamento. Faustus é fruto de intensa pesquisa nos arquivos baianos de mobiliários. Lá estávamos nós, na opulenta Bahia barroca, dos oratórios, das arcas, berços, mobiliários urbanos e domésticos. Como um gesto científico, mas assumidamente impreciso, o projeto se dá a um destino que nem o próprio artista controla. Aí está sua arte, na relação entre pessoas e lugares. A obra, diferente do que possamos intuir, não se anuncia pronta no pensamento antes da ação. Ao telefone, ele recita, para mim, um trecho de Fausto: “A gente resiste aos antigos métodos, e eu não me sinto adaptado aos novos; preciso agora de um bando de adeptos para fazer o trabalho de um só”. A criação de Rufino é também isto, um pensamento impreciso para conectar-se aos ambientes, às histórias dos lugares e ir capitaneando e observando este “bando de adeptos” que cercam as produções de seus pensamentos. Aqui, estamos, eu, Daniel, Gusmão, Naiara, Bryan, Saskia, Letícia, Márcio, André, Gei, Humberto, Ricardo, Luís, Eliseu, etc, na busca imprecisa de um fantoche, de um personagem para tirar o castelo, o palácio da escuridão, para abrir, ainda que numa visão imprecisa, obstaculizada, o Faustus no Salão Nobre.
A instalação é composta de madeiras apropriadas de demolição e desmanches, compradas em depósitos e em coleções particulares. Quase nada chegou inteiro para compor um fantoche que precisa desta incompletude. Nos pedaços que faltavam para a composição de tíbias, fíbulas, fêmures, Rufino completava, ora com madeira, ora com gesso. Assim, formou-se um gigante que se resolvesse ficar de pé, corresponderia a um homem de vinte e dois metros de altura.
No processo, a tormenta, os questionamentos, a angústia, as tentativas malogradas, a busca laudatória. Nada mais fáustico. Para pesquisa, o passado, a memória, os depósitos, as reservas, os porões do palácio. Qual o sentido das coisas? Estávamos lidando com o esqueleto, o essencial. Porém, assumimos os embustes, os disfarces, os encaixes erráticos e assertivos metaforizados em madeira e gesso. Cada sujeito envolvido no projeto com sua visão, seu entendimento do que seja a obra, o processo, a maneira de chegar. Cada um com seus ossos, sua ancestralidade étnica, estética, moral. Cada qual com seus fantasmas, suas dúvidas. “No espaço angusto dos nichos”, afirma Mefistófeles, “se oculta um mundo medonho”. No ofício da arte “Pensam que tudo é logro, jogo, sonho”. Nesta luta com a memória, parte importante deste processo da arte, Rufino “não suporta mais a casa em ruínas, quer fugir, bater asas...”. “Perder a aposta agora?”, poderia questionar ao artista os seus próprios fantasmas. E Rufino não esmorece.
Aqui, então, apresentamos o 3o Ato, o pacto, a possibilidade do esclarecimento, de alcançar o Zênite, o sol nietzscheano. Zaratustra, personagem de Nietzsche, que não quer ser sozinho, precisa brilhar sobre a águia, sobre as coisas, levando sua experiência aos outros. A vida é curta, diz Wagner a Fausto, mas a arte longa.
Uma exposição é a permanência de vestígios, a poeira das tentativas, o esclarecimento pelo sensível. Os ossos. O que faz o artista são possibilidades de encaixes: o diálogo. Entregar-se aos estudantes, à cidade, isto nos interessa. Vencer o passado compactuando com ele, eterna contradição. Os guardados não sucumbiram ao extermínio do esquecimento, estão vivos, em Faustus.
No Coro dos anjos, uma das passagens de Fausto, clama-se por luz, para vencer a escuridão: “Botões de Cor. Desabrochados, despontando em flor”, como nas decorações do Palácio da Aclamação. “Deixai-os chover rosas!”, gritará a implacável passagem do tempo, pois nada restará às goelas de fogo do esquecimento. A arte de José Rufino não teme esta viagem, faz da memória e do esquecimento uma espécie de alterego, um ensinamento perturbador, mas também um êxtase. Wagner, ensina com parcimônia a Fausto: “A arte é longa e curta a nossa vida!” Aqui, deveria eu, terminar com um travessão, esperando a resposta, a continuação do diálogo com José Rufino ou com qualquer outro interlocutor.
Todas as citações entre aspas do texto foram retiradas das seguintes referências bibliográficas:
Campos, Haroldo. Deus e o diabo no Fausto de Goethe: marginalia fáustica. São Paulo: Perspectiva, 2005.
Goethe, J. W. Fausto Zero, tradução Christine Röhrig. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
Pessoa, Fernando. Primeiro Fausto, São Paulo: Iluminuras, 1996.