Luiz Camillo Osório - José Rufino: o delírio do ordinário
2001
O perigo da vida é asfixiar-se sob o peso da existência
Maria Zambrano
O perigo de toda reflexão sobre a arte é o didatismo. Explico-me: a obsessão de apontar o que significa determinado trabalho, vai sempre limitar seu modo de ser, a possibilidade de gerar e revelar novos sentidos para o público. Mas alto lá! Será que as obras devem ser deixadas à deriva, sem que uma palavra acolhedora traga-a para mais perto de quem se aproxima? Qual o estatuto da reflexão diante de uma obra? Respondo: pensar com e a partir da obra, jamais pensar sobre ela.
Este parágrafo inicial é válido para qualquer texto crítico, para qualquer apresentação de exposição, mas ganha relevância extra em se tratando de José Rufino. Este jovem artista paraibano impregna sua poética de uma reflexividade peculiar. Mais ainda: procura sempre trazer o lugar de sua ação artística para dentro de sua obra. Ou melhor, faz com que a obra e o lugar complementem-se, de modo a que se potencializem mutuamente.
A maioria dos trabalhos de Rufino dizem respeito à vida comum de todos nós, em um mundo perpassado por uma lógica instrumental que regula nossa maneira de ser e de viver em sociedade. Daí sua fascinação pela memória sofrida e mecânica que se impregna nos arquivos burocráticos. Ou seja, Rufino traz o que há de mais ordinário, embrutecido, mecânico e repetitivo, para a ordem propriamente poética do extraordinário, do surpreendente, do incomum. “Que sentido teriam então todas estas velhas garatujas a não ser o de ficar aqui mesmo, alimentando nossas necessidades de transitar entre estas pilhas de velhas celuloses, como traças treinadas?”.
Suas instalações retomam a aura carregada das repartições públicas e sua memória burocrática, retirando delas o motor de seu tédio doentio: a funcionalidade. Nada ali tem que funcionar, nada se submete à ordem da servidão; as coisas podem, portanto, aparecer pela primeira vez como sendo algo em si mesmas e por si mesmas. A escrivaninha passa a ser, para além de mesa de trabalho – coisa que ela não deixa de ser -, uma matéria viva, um fenômeno simultaneamente físico e simbólico, que junto aos outros objetos da instalação, cria um campo novo de significados para o que aparentemente já é conhecido.
O dado positivo das coisas cotidianas aparecerem no espaço reservado da arte, é que elas podem ser pensadas e não apenas usadas. E pensadas no sentido poético do termo, de algo que nos conduz, sensivelmente, para além do ordinário e do banal. Aí surge a contradição: a separação, o afastamento do habitual, é o que dá vida ao cotidiano. Por isso, a arte, ao contrário da ciência, nutre-se da contradição, da fala inusual, do que não pode se acomodar na obviedade das certezas.
Duas características do artista são importantes para a sua poética, para a formalização de seus trabalhos. Primeiro, Rufino tem com a literatura, ou melhor, com a palavra, uma relação afetiva que produz vibrações plásticas indiscutíveis. Seus textos penetram nas suas instalações, investem-se de uma materialidade peculiar, sendo, assim, parte determinante da experiência poética.
Para isso, certamente contribui sua formação científica: trata-se de um paleontólogo, que decifra e estuda os sinais de vida cristalizados no tempo. Seu vocabulário, extremamente plástico, é capaz de construir uma ficção recheada de detalhes que vão nos envolvendo na sua atmosfera delirante. Essa, por sinal, é uma constante em sua obra: ela sugere familiaridade para potencializar o estranhamento.
O interessante nos trabalhos de Rufino é que eles conseguem ser universais sendo medularmente nordestinos. Digo isso porque há nesta forma de falar do passado, das coisas carregadas de memória opaca, uma leveza que vem do vento dos canaviais. O arcaico e o afetivo convivem sem culpa, e poeticamente, nesta parte do Brasil. E de uma maneira que pode ser muito valiosa para o mundo contemporâneo, tão desinteressado das complexidades da vida.
A arte contemporânea só vale à pena quando nos tira da passividade das certezas. Quanto a isso, não tenho dúvida que a instalação de Rufino cumprirá o seu papel...
Luiz Camillo Osório (Crítico e Curador do Museu de Arte Contemporânea de Niterói), Rio de Janeiro, março de 2001