Adolfo Montejo Navas - A memória, essa planta do tempo
2005 A MEMÓRIA, ESSA PLANTA DO TEMPO
Não há um momento vivido sem momento morto.
Talvez a matriz geradora do trabalho artístico de José Rufino seja formada pelo conjunto de correspondências chamado “Cartas de Areia”. E não só pelas sintonias borgianas, mas sobretudo porque o nome desse território faz parte do brejo paraibano, espaço fundado mas também fundador, reconstruído pelo artista como símbolo espaço–temporal, como lugar do agreste real e do imaginário. Não tanto uma paisagem, mas um país chamado Areia. Assim, o lugar da história, das narrações é importante, diríamos que central, e constitui um verdadeiro ratio de ação. Toda a paisagem e a sua cultura, desde os engenhos de açúcar às fazendas, às cirandas, à história familiar e à vegetação, se diluem nesta obra. * (1) Plantas, minerais, animais (reinos ainda um pouco independentes de nossa civilização), têm uma voz própria, e a sua escala é dimensionada nesta coleção de desenhos que converte destinos históricos e patrimoniais em destinos estéticos. Talvez por isso não deixa de ser sintomático que nela as árvores sejam raízes, ou as duas coisas, visões aéreas/subterrâneas ao mesmo tempo: sementes e frutos como duas temporalidades em jogo. Assim, pode-se contemplar um pequeno conjunto de desenhos que se manifesta às vezes com “sangue azul” pintado - toda uma sub-série de irônica genealogia dentro desta plural correspondência -, já que sobretudo a coleção se multiplica em várias direções para abranger um leque de práticas diferentes. Trata-se de uma poética que não quer ser completamente autônoma, funcionar só no âmbito das formas. Ela foge tanto da banalidade como da transparência. E mantém as suas ficções subterrâneas - o território afetivo, o geográfico, o artístico - num alto grau de contaminação e de interpenetração. Um grau de intertextualidade que ultrapassa os bastidores mais costumeiros do desenho contemporâneo, onde o urbano e a subjetividade magnetizam a maioria da produção. “Cartas de Areia” é um ícone de tudo isso, pois trata-se sempre de uma poética contaminada por camadas, geológica até em sua convivência com o tempo. Não em vão, o artista é também paleontólogo, ou seja, estudioso dos restos, dos vestígios, e por extensão dos materiais daquela infância que fala mais alto, com seu sentimento de perda afincado no inconsciente. Por outro lado, a totalidade de títulos e obras em latim, com que o artista costuma trabalhar, não faz senão mostrar uma língua franca do passado, uma aura de cadastro científico-poético da memória, como se ela fosse uma planta e precisasse de novo de nomes originários, de uma etimologia própria. Gesto lingüístico às vezes não isento de ironia, diga-se de passagem. José Rufino mexe na memória - essa planta do tempo - como numa arqueologia contemporânea: o olho bifronte do artista orienta-se para o passado e para o hoje, ao mesmo tempo, como num moto-contínuo que reativasse todas as células de que se compõe o tempo, essa vertigem incurável na biografia do Ocidente. De fato, hoje costuma-se manter o passado como remake, como algo morto ou em estado meramente letárgico, o mais quieto possível, tanto quase como o futuro- esse outro impossível -, talvez para mitificar nosso quebradiço presente como único tempo absoluto. Nesse contexto, a poética intervencionista de Rufino apresenta-se como transversal, faz da presença da história um verdadeiro leit motiv, dialogando com um tempo que se recusa a desaparecer.* (2) Neste sentido, é mais que significativa a sua pesquisa sobre o esquecimento em Obliteratio (2001), uma série de desenhos paralela ao conjunto de Cartas de Areia. Como um coletor de memórias arqueológicas, e através de desenhos e textos, o artista conseguiu construir uma série inédita com o passado revisitado, onde a investigação visual – descobrir como “funciona” o esquecimento, através de imagens/engenhos – aproxima-se do mistério decantado. Uma visita ao passado, àquilo que já não existe, a uma espacialidade que reina como um todo, ao que é mutável; uma confrontação de tempos/lugares onde tudo é meio turvo, errante, indiviso. Uma topologia espiritual do esquecimento que chega a 20 motivos: casas, árvores, pequenos vales, portões, selos, entre outras coisas menores, desenhos cruzados como radiações, como pontos de partida que são também de chegada. Há uma equação nesta poética que se inicia com a relevante apropriação de seu nome como artista, correspondente ao avô paterno, uma figura tão mitológica quanto controvertida de sua infância. No entanto, esta apropriação não chega a ser uma homenagem, um recalque sentimental, mas uma forma explícita de intervir no passado, de poder revisitar com liberdade a memória, este pathos vivido. Esse jogo de identidade está bem presente em alguns trabalhos desta correspondência/Cartas de Areia, onde o endereço indicado e a assinatura do artista mantêm o mesmo nome: José Rufino. “José Rufino não sabia nada e nem deu pra contar” aparece em um envelope com um desenho grande em forma de boca. Mas quem? Qual Rufino? De quem se fala? E, não menos importante, de onde se fala? A heteronímia do nome em naturezas diferentes cria miragens, reflexos, inversões, como quando aparece Arborator - o podador de árvores -, um nome que o artista usava até os anos 90 como um alter ego. São, portanto identidades em jogo, que aparecem vinculadas: a nomeada pelo artista e a relacionada com a identidade do tempo. “Arborator procurando a árvore da família” consta em outro dos desenhos onde a caligrafia atinge valor plástico compositivo. Pode-se dizer, assim, que depois da apropriação o outro gesto mais significativo desta prática artística é a intervenção. Há nesta poética uma teoria (Respiratio) (3) apreciada pelo artista, lida em Aristóteles, que reflete sobre a respiração das coisas inertes, como se houvesse uma espécie de alma (lembramos a obra Respiratio (4), entre outras afins a este pensamento, nas quais se chega a utilizar material orgânico). Este é um dado que atravessa numerosos trabalhos de Rufino, como se os próprios objetos supurassem, exalassem, mas não provenientes de um corpo onde a subjetividade falasse mais alto (como no caso de Leonilson), senão de um corpo maior, “grávido”, que no fundo lateja com as suas sensações de excesso, de expurgos, de exsudação, abrindo, deixando sair...um húmus de raízes coletivas, até panteístas. Não estaríamos tampouco longe nem de uma catarse nem de um ritual, algo que também se pode sentir em qualquer instalação do artista, tanto pela disposição estratégica dos elementos, como pela intervenção precisa neles produzida. De fato, o próprio conceito de instalação aqui é reducionista, em função da energia disposta nestas composições espaciais. Apesar da manifesta configuração narrativa de seus trabalhos, do relato coral evidenciado pelas “Cartas de Areia”, do substrato social e particular que sublinham, a ênfase está na poiesis, como trabalho de fulguração, de ascese –daí também a epifania contida no título deste texto. Deve-se considerar o artista sobretudo como um narrador de epifanias, um produtor de aparições, estados que não se medem pela linearidade nem pelo ideário discursivo, mas pelo salto da vertigem, apesar do caráter de série da coleção. Aliás, a obra desenhada de José Rufino é mais concretamente uma epifania noturna, uma luz negra que oferece as suas iluminações em gravuras, monotipias; assim como a noite tem seus atributos e até animais preferidos: as sombras, os silêncios, as corujas, os morcegos, aqueles que divisam a luz obscura que produz medo, como uma mitologia do avesso (e não esqueçamos aqui a importante referência a Augusto dos Anjos). Aqui se estabelecem correspondências à luz de um outro olhar, aquele que privilegia um lado negativo para poder ver melhor “esse armazém de imagens e símbolos” a que Baudelaire chamava generosamente de mundo visível. A natureza da coleção “Cartas de Areia” é idiossincrática, de uma singeleza e delicadeza raras: é uma obra aparentemente frágil, de papéis de pequeno tamanho, mas que se prepara contra o duro embate do tempo e da história com uma insistente profusão numérica. Estamos falando de uma coleção que atinge algo como 400 desenhos, ainda que haja muito mais exemplares, e cujo conhecimento público ainda é muito reduzido, pois todas as cartas, os envelopes – como as gavetas, as caixas e as fotografias (outros suportes caros ao artista) - são irmãs do guardado, da função de abrigar, proteger. Assim, os desenhos desta coleção expõem e velam ao mesmo tempo: decifram e cifram, reescrevem um mundo com novas veladuras. Há neles uma inequívoca tensão: as “Cartas de Areia”, abertas à transformação, são cartas metabolizantes, cujo suporte é camaleônico para diversas respostas gráficas, pictóricas, compositivas. É uma coleção de desenhos que não tem vórtice direcionado como algumas instalações do artista, pois é horizontal, seqüenciada: de horizonte. O corpo de tensão do desenho é bidimensional, exige uma proximidade e uma fisicalidade, um grau de intimidade com os desenhos, enquanto em outras documentações apropriadas pelo artista passam a outra condição, a uma arquitetura de peças objetuais-escultóricas, nas quais atingem novas coordenadas mais verticais, já que falamos de dois espaços diferentes, pois o primeiro (as cartas) tem uma cartografia mais íntima, mais reconhecidamente lírica: o espaço está dentro e não fora. Como o próprio material esgarçado das cartas e os seus antigos conteúdos e mensagens, nas Cartas de Areia tudo é fissura: o tempo e a sua vivência, mas não só isso. O tempo e a sua ferrugem estão utilizados ali de forma matérica e energética. Estamos numa zona intersticial, onde reina uma certa indeterminação temporal pela ausência criada de limites espaciais. Se o campo de visão da coleção está intimamente ligado ao espaço disponível, à superfície de papel, as “Cartas de Areia” não deixam de ser uma ativa ocupação de espaço: imaginário e físico, temporal e bidimensional. Não se trata de um território neutro por ser imaginário, mas ao contrário: ele é precisamente forte porque é imaginário. Distante de um formalismo clean, da pureza do limpo, nele há uma densidade nada oculta, alimentada, multiplicada nas operações de re-lembrança, via interferência e potenciação das variações (e improvisações), onde se vive um resgate neobarroco de pulsões alternas de morte-vida, como fantasmagorias, e onde não se pode negar o embate do qual somos testemunhas: forças de construção e destruição se enlaçam nestes desenhos, dando potência imagética à série. Nesta correspondência existe uma desmaterialização do peso do passado re-escutado, e uma re-materialização posterior que adota uma ampla lista de recursos plásticos: a utilização dos acidentes e defeitos, a variedade dos suportes, a trama intensificada das cores, as formas livres, a disposição exterior e a composição interior. Ao mesmo tempo, cada desenho parece confirmar toda a coleção, pois se trata de um trabalho metonímico: como se cada carta e cada envelope, cada parte chamasse a sua representação global, como se cada parte confirmasse o todo da coleção. Aliás, a poética de Rufino é por extenso metonímica: sempre são fragmentos aspirando a outras unidades maiores de representação, em operações de forte simbolização. No princípio, os desenhos “de Areia” eram meros selos pintados, depois envelopes, cartas, fragmentos. Assim, a coleção de desenhos foi cobrindo os suportes de papel, expandindo-se, amplificando cada vez mais seu potencial de intervenção: gesto, traços de dentro e de fora, de frente e de reverso, até chegar a incorporações de outros materiais, de outros contextos, o que mostra em seguida a dimensão desses desenhos como espaço expandido, já num âmbito contemporâneo onde compartilham características como o reconhecimento de uma narrativa, a recuperação da figura, a valorização da auto-referência, ou a experimentação sobre o suporte. A obra desenhada de José Rufino é uma polifonia corrompida por todo tipo de elemento, que como signos parecem chegar ao limite de sua evocação para permitir a transgressão matérica e até espiritual. O resultado é algo como uma reconquista visual, na qual o artista funda a sua mitologia estética própria com formas antropomorfas, imagens magmáticas, manchas, labirintos, às vezes figuras filiformes, utensílios remotos, seres longínquos, plantas de seres, seres manchados, anjos caídos, desenhos–raízes, desenhos–frutos. Como acontece com o catalão Zush, ou com Pierre Aleschinsky, artistas que ostentam um mundo visual cheio de chaves específicas, o território desenhado de Rufino possui as suas próprias máscaras, seus habitantes ignotos, no limiar entre o visível e o invisível. Uma poética que reúne ficção e realidade, história e imaginário, o acervo da modernidade mais angustiosa (heranças do surrealismo e do expressionismo) com um mergulho conceitual no suporte, que respira uma concepção contemporânea da qual a representação não é nunca absoluta nem correlata. Figurações mais que figuras que reduplicam o mistério, fulgurações enigmáticas, até nos desenhos mais simples. As células rorschachianas se estendem por muitos trabalhos – negativos de uma imagem cuja presença interroga sobre a natureza da visão, da percepção. São formas morcego ou um bestiário apresentado por associação imaginária, de fábula. Vale lembrar aqui o carinho do artista pelo livro iniciático de Justinus Kerner, redescoberto como fonte visual próxima (até em sua carga esotérica e de ultramundo, na sintonia e valor dados às manchas-sombras pós Hermann Rorschach). Algo que também pode ser visto na série de desenhos–raios–x de fotografias antigas – fora das Cartas de Areia –, onde o artista desenha efígies agrestes, linhas abruptas negras sobre o próprio vidro e moldura, onde a intervenção ganha uma aura de ausência ressaltada, espectral, entre “goyesca” e brut* (5). Como uma teia de aranha, os desenhos de Cartas Areia incluem de tudo, equacionam abstração e figuração, combinações binárias de cor, explosões ou poucos tons. Simples marcas e riscos e massas empastadas, aquarelas sem planos de cor e estruturas tonais carregadas. A pele espessa dada pelo guache oferece em suas camadas outra pele que se oculta. E, muitas vezes, uma caligrafia plástica (Eu tenho asas, eu tenho asas, eu tenho asas) que faz o texto correr como uma expressão compositiva * (6). Por isso, é freqüente encontrar as tintas da caligrafia como cores da composição, como árvores da ciência deste desenho. Sobre o pano de fundo de muitas cartas se acrescentam as palavras-inscrições do artista: assim, a planta do “dói tanto” é vermelha, e algumas frases utilizadas (particulares, coletivas) são uma poesia verbo-visual que se aproximaria (ainda que distante) da arte-postal.*(7) Não se deve esquecer que toda imperfeição é um legado aproveitado - às vezes o desenho costura a quebra de um envelope, seus furos, continua na dobra irregular - e os acidentes do envelope ou a carta, como acidentes do tempo, são uma estrutura que subjaz. De fato, as nervuras de diversos envelopes funcionam como arquitetura do desenho, orientam a composição, constroem uma medida de equilíbrio bem diferente das extremidades confiadas da Renascença - não em vão o tórax como eixo corporal aparece na dobra de vários envelopes, ainda que de uma forma nada regular nas proporções -. Dor e raízes, o “cachorro clássico sem cabeça” e o prosaico entrando com a sua montanha de areia, de tempo. Grutas, armários, lápides e, às vezes, um olhar límpido quase mironiano (o lado surrealista noturno também passa por aqui em formas rizomáticas e cores planas ou neutras), cabeças totêmicas, tudo como emblemas construídos sem perspectiva, de forma rasa, recorrendo apenas às diferentes superfícies. Esta mesma dispersão faz com que a coleção seja poliglota, junte têmpera, tinta, guache, lápis; reúna desenhos puros, desenhos-pintura, desenhos pura linha e outros de trama e valores absolutamente texturais. Além disso, o longo período coberto pelos desenhos (1988-2004) permite estabelecer diferenças, séries internas - como os envelopes que anunciam a morte, com a sua faixa de luto, os que contêm caligrafia textual, os que apresentam imagens isoladas, nuas, ou ainda os desenhos com recortes, para exemplificar quatro agrupações de destaque -. A obra desenhada de José Rufino usa a liberdade e a improvisação sobre a partitura do passado como um suporte. O valor das manchas próprias do papel e as criadas são também extremidades de uma memória que costuma sair de seu lugar estabelecido (veja-se o pedaço de envelope de “Arborator”). São gestos-extremidades-extensões que desmentem a imagem de partida, como se mergulhassem num celularidade nova: micromundos de uma coleção que é ao mesmo tempo de uma espessura e fragilidade estranhas, raras. E esse atributo nebuloso da coleção é positivo, guarda uma certa opacidade, em contraste com o mundo exaltado pela publicidade e a política das falsas transparências. Um background imagético que resiste a invasões visuais sem esconder-se, e que também pode ser encontrado em outras imagens radicais, como as de Miguel Rio Branco, por exemplo. Nesse bloco de cartas obscuras, com marcas de mãos e grafismos diretos, há um trabalho de amanuense, de miniaturista, onde o tamanho do desenho é praticamente uma inscrição sempre concisa. Mas também há um espírito de cadastro imaginário, um inventário de imagens que tem a sua própria vereda de pesquisa, - como alguns desenhos científicos de Leonardo da Vinci tinham*(8) -, com a pretensão de tornar trans-histórica a matéria prima afetiva, familiar. Assim, intimidades, segredos, declarações – parcialmente legíveis – podem ser contempladas sempre como imagens de um tronco comum, cortado, fragmentário, intervindo, com seus rios de manchas-lágrimas correndo/decorrendo, até em desenhos miniaturizados. Seja em relação ao passado negro da história (sob a ótica dos patrões, injustiças à parte), ou em relação a qualquer outro tipo de documento histórico e privado, sobre os quais o artista confessou que seu dilema era “ou queimava depois de ler, ou me matava, ou partia para outra coisa”. A reconstrução da história da família é sempre um re-codificar – a terra do agreste de Areia se levanta como um exorcismo do peso do passado, e não esconde um território afetivo em movimento, uma sinergia vivenciada (aliás, algo constitutivo da poética de José Rufino). Nos envelopes virados ao avesso e nas cartas expostas, relidas, já com o desenho como destino, os traçados labirínticos, as paisagens/figuras, quais palimpsestos que absorvem mundos, encontram-se em suspensão na correspondência – no ar do tempo convertido em hiato temporal – como as torres da Sagrada Família de Gaudí que se levantam como árvores-plantas em alguns desenhos. São segredos velhos, novos, convertidos em formas amorfas da memória. Daí que este reino visual onde o realismo e a fantasia estão de mãos dadas e se metamorfoseam pareça pertencer a uma Arcádia da infância. Assim como o endereço mítico sempre foi: José Rufino de Almeida, Engenho “Vaca Brava”, Areia, Paraíba do Norte, como se pode ler em numerosos destinos escritos, o que aconteceu foi que o artista acabou re-endereçando esta correspondência, ativando algo dado já por falecido. Uma tarefa eminentemente sublimadora para umas cartas que têm até um lado funerário (de epitáfios, de ata notarial), e um lado de ressurreição anímica, de reconhecimento. Nas coordenadas destas cartas desenhadas se redesenham os contornos de um espaço povoado de signos temporais aquém de seu lugar, a favor de outro sortilégio. “Não se trata só de ocultação, também se trata de caçar algo, de transformar os textos antigos e transpassá-los ao século XX”, segundo Arnulf Rainer. Tapar, cobrir e impedir a visão completa é fundamental, ou melhor, é a salvação (e não tenhamos medo da palavra, pois não precisa ser só religiosa). Não se deve fugir desta dimensão espiritual da poética de Rufino, porque ela está onipresente. De fato, há sempre uma mesma atração pelo informe, como condição de partida, gerativa, de retorno para uma origem maior que a propiciada pelo simples presente, pelo que vemos. As Cartas de Areia são um ponto de partida, o grau zero da poética de Rufino, na medida em que evidenciam melhor que qualquer outra coisa, a iconografia objetual e espiritual que serve de base para todo o seu projeto de linguagem plástica. Apesar do artista ter utilizado correspondências em instalações diversas (Lacrymatio, entre outras), a autonomia dos desenhos desta coleção é tanta, que se constitui toda em metáfora simbólica de sua poética. O que se produz nos desenhos de Cartas de Areia é uma superposição de superfícies, de planos – não só visuais como também temporais –, de tal maneira que o que está embaixo ainda aparece, goza de presença estética. Nunca a imagem de partida é apagada; apenas parcialmente é negada, desviada. Como num paradoxo de des-construção, há uma construção peculiar que não deixa de ser conceitual e uma “inversão estratégica”: “Não apaga para escrever de novo –escreve de novo, pelo contrário, pra não apagar”. Assim, o papel se adensa de imagética, absorve-a: novos elementos se introduzem, texturas, cores, substâncias, figuração, composição, etc., para chegar a uma nova contextualização. A imagem, muitas vezes a visualidade de um envelope ou de cartas-pedaços, com seus signos escritos, caligráficos ou não – como acontecia na poesia visual da arte postal, onde curiosamente o artista começou –, é o ponto de partida para contextualizar outros elementos. Desta forma, os sentidos das cartas como documentos visuais e “ideológicos” passam para outra dimensão, mais perto do enigma que da informação ou da mensagem direcionada. Uma espécie de “imagem dupla”, como apontou Herbert Brödl em relação aos trabalhos de Arnulf Rainer *(9), o artista vienense com quem coincide a poética de Rufino nesta “correspondência”. Ambos podem ser considerados artistas de arquivo, de documentos, de história até natural (onde à performance do tempo e da terra se inclui a reescrita do artista), assim como Borges também era escritor da biblioteca de Babel, de grande acervo cultural. Há uma “recuperação energética”*(10) que é semelhante em ambos os artistas plásticos. Talvez o “estado sacrificial” de Rufino não seja tão enfático e dramático, quanto intenso, no artista austríaco. Se a exorcização (já insinuada) se apresenta como um ritual de representação catártica, no fundo é neste processo de apropriação e intervenção onde há uma metamorfose que, em qualquer caso, é uma ressurreição. Ou, como pensava Benjamim, só se pode preservar mutatis mutandis: só se produz um devir, intervindo sobre a origem. E não é um exagero salientar no trabalho de Rufino, e sobretudo no campo mais específico dos desenhos, certa “sintonia alemã” que chega a dialogar não só com o austríaco Arnulf Rainer como também com Joseph Beuys, e, em menor medida, com Alfred Wools. Com Beuys, as formas suspensas das manchas em suas aquarelas mistas (com lápis, cloreto de ferro ou até óleo) aproveitam o espaço do papel de uma maneira semelhante, sendo as figurações crípticas, como uma caligrafia visual adensada, enigmática e simbólica, que não esconde muitas vezes a chaga de um mundo ferido e a sua possível cura (são muitos os desenhos da década dos anos 50 e alguns da seguinte que podem servir de exemplo desta conversa atemporal).*(10) Já com Alfred Wols, artista anterior a Beuys, a proximidade é mais conceitual que estritamente visual, ainda que a utilização das denominadas “formas multi-evocativas”, que são inspiradas pela estrutura celular dos organismos viventes, se conectem com exemplos “de Areia”. Algo microscópico existe na modulação dos reduzidos desenhos e aquarelas de Wols, scherzos abertos e livres que contam com a irregularidade e certa disposição a reconhecer o acaso dentro da própria estrutura da composição do desenho. As margens livres deixam as imagens pairando, em um estado de suspensão, o que acontece também com numerosos desenhos desta coleção de Areia, cujo olhar também se volta pra dentro, deixando a mediação imagética no ar. Não em vão, no vocabulário de Rufino a analogia com a realidade é uma passagem (sempre há uma imaterialidade evocada), o desenho é um arranjo visual e vive de um paradoxo: ligam detalhe e composição no mesmo plano de importância, e imagens difusas acabam sendo determinadas (o contrário da poética de Wols, que estabelece com composições complexas uma ênfase e atenção aos detalhes). Corroborando tais paralelismos, Rufino teria assinado embaixo este aforismo lançado por Wols: ”Contamos nossas pequenas fábulas terrenas em pequenos pedacinhos de papel”. *(11) Se a aura recolhe tempos, em sua chamada distância dupla Rufino trata-a como testemunho, para atualizá-la (“O que desaparece é seu peso tradicional”, dirá Walter Benjamin). Há, assim, um movimento pendular na poética rufiniana: a aura se alimenta como potência, ao mesmo tempo que se fragmenta, se des-potencializa. Rufino joga com a autenticidade dos documentos, com a sua autoridade, aqui e agora. Só que o aqui e agora da obra de Rufino é transversal ao tempo, e, acrescentaríamos, transversal também à sua própria visualidade (nota a). “Walter Benjamin compreendia a memória não como a posse do rememorado – um ter, uma coleção de coisas passadas –, mas como uma aproximação sempre dialética da relação das coisas passadas ao seu lugar, ou seja, como a aproximação mesma de seu ter lugar. Decompondo a palavra alemã da rememoração, Erinnerung, Benjamin dialetizava então a partícula er – marca de um estado nascente ou de uma chegada ao objetivo – com a idéia do inner, isto é, do interior, do dentro profundo. Deduzia isso (de maneira muito freudiana, por sinal), de uma concepção da memória como atividade de escavação arqueológica, em que o lugar dos objetos descobertos nos fala tanto quanto os próprios objetos, e como a operação de exumar (ausgraben) alguma coisa ou alguém há muito enterrado na terra, posto em túmulo (Grab).”*(11) Assim como o próprio Benjamin fala de escavações, de alguma forma as Cartas de Areia têm algo de objeto trouvé desenterrado, que foi intervido, reconquistado para a arte que nos é contemporânea. A obra de Rufino é feita desse limite, desse diálogo atemporal, cuja materialidade é quase imaterial, ou pelo menos lida com o intangível, já que nega o peso da memória, “a negação da moira”*(12)– do destino –, enquanto por outro lado afirma a identidade construída, feita de uma outra materialidade mais sóbria, mais ascética. É na releitura do peso da memória, da materialidade originária, nesse diálogo com a correspondência em si, cheia e pródiga de signos, que se potencializa uma nova identidade - subjetiva e coletiva, ética e estética -. Cartas de Areia trata-se de uma série volumosa cuja poética enfatiza seu lado atávico, que toca na herança hereditária precisamente para reordenar os seus valores, para disseminar a sua carga simbólica estabelecida em outro horizonte. É esta fragmentação realizada que multiplica ainda mais o seu imaginário, produzindo um salto que é uma progressão espiritual. Visto assim, se “o atavismo é uma forma de herança que tem como limite suprimir a herança, coisa que constitui um progresso humanista, pois pulveriza a herança até o infinito, dobrando o número de seus signatários a cada geração”*(14), como aponta o romancista Michel Tournier, o itinerário artístico que a correspondência de Areia traz é um mapa onde o tempo e o espaço se conjugam, para nossa sorte, de outra forma, como José Rufino procurando Arborator. Coartas de Areia, mas que descobrir o existente, dá condição lírica a um lugar. O mergulho é cotidiano, sem nenhuma superioridade modernista por parte do artista; é rente ao chão, mas um chão cheio de símbolos geográficos, culturais, onde o obscuro e o mágico falam de uma quimera semelhante à de Edgar Allan Poe ou Juan Rulfo (dois autores que, por sintonia, o artista poderia ilustrar). Não em vão os referentes literários desta coleção de cartas e manuscritos funcionam, como todas as outras coisas, como ressonâncias.* (15) A partir de fragmentos, restos, detalhes, estas cartas desenhadas articulam e reinventam ressonâncias, constróem sobreposições com novas inscrições. Talvez porque haja algo adâmico neste trabalho que resgata um Éden, o nomear de uma periferia, do agreste, onde o mundo recomeça, que talvez nunca tenha existido assim, mas que agora vemos. ADOLFO MONTEJO NAVAS Rio de Janeiro, janeiro/abril de 2005 NOTAS (1) * = Além do próximo "Livro de Areia", são certas circularidades temporais as que entroncam os universos do escritor argentino e do artista paraíbano. (1) Desse território–ilha que é o brejo paraibano, situado entre Cariri e Curimataú, há duas referências inevitáveis, que são complementares: uma como cadastro de geografia humana e outra como romance fragmentário da região. Horácio de Almeida, Brejo de Areia, Ministério de Educação e Cultura, Serviço de Documentação, Rio de Janeiro, 1958. E José Américo de Almeida, A Bagaceira, José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 2000. (2) Neste mesmo campo lírico de atuação, e também contra a memória do deterioro e incorporando a oxidação da vida, inscreve-se o trabalho de Fernanda Gomes, com a sua constelação de elementos resgatados do naufrágio, assim como o de Farnesse de Andrade, com a sua objetualidade densa, surrealizante, em assamblages com móveis, como um artesanato tradicional que salta pelos ares com um olhar dada). (3) Existe outro trabalho inspirado em outra tese de Aristóteles, que é sobre a geração espontânea de vida, de idêntico título: Vis formativa. (4) O artista realizou a direção de arte de uma curta, em parceria com Torquato Joel, em torno de Augusto dos Anjos, Transubstancial (2003), poeta que chama a atenção para o humano, para o seu lado mais físico, orgânico e microscópico, em busca de outra natureza espiritual. Algo que se pode encontrar nesta Correspondência de Areia. (5) Há umas fotografias desenhadas com intervenções pictográficas sobre o vidro – outros retratos sobre quadrinhos pequenos, como uma série sem projeto–, que alimentam essa aura melancólica que aparece nas cartas. Algumas fotos são de família, são ex-votos, sempre em molduras pequenas, do interior de Pernambuco. Existe uma coleção de desenhos-colagens de intenções semelhantes, porém menos minimalista, na obra do pintor espanhol Antonio Saura. (6) “Paisagem remota”, apareceu em um desenho. “Águas passadas não movem moinhos”, apareceu em outro. E assim em tantos outros: “do mugido da vaca brava não se ouve mais nada já que águas passadas não movem moinhos”, “negar uma sede d’ água”, “essa porra toda no fim não vai servir para nada”. “Nunca meça distâncias diante das dificuldades”. (7) Também próximos, porém de natureza diferente, encontram-se os livros-obra ou livros-objeto feitos pelo artista em certa quantidade. (8) Além da série Obliteratio, praticamente inédita, sobre o esquecimento (uma coisa que não existe segundo um famoso verso de Borges), e onde aparecem desenhos-engenhos imaginários de “capturar” o tempo passado, o artista tem um projeto, já em andamento, que consiste em trabalhar sobre animais representados no imaginário científico: fosseis (griphão, medusas, etc.), que se sintoniza com certos ideários estéticos da Renascença. (9) Arnulf Rainer, À sombra das palmeiras, CCBB, Goethe Institut, Rio de Janeiro, 2000. Outras sintonias, além das obras feitas com a visão vedada (a série de desenhos de 1952, Blindmarelei, de Arnulf Rainer), são a extensão dos trabalhos em séries, que descansa em conjuntos que abrangem largos períodos, ou uma forte admiração pelos livros ilustrados de botânica. (Relembrando aquela devoção de Martius: “Nas palmeiras reside eterna juventude, nelas floresço”.) Também se deve acrescentar a comum preocupação pela identidade em ambos os artistas. (10) O que acontece também no Brasil com os desenhos em aquarela pré-viscerais e viscerais de Anna Bella Geiger em relação ao artista alemão; outra sintonia estreita. (11) Wols, Photographs / Watercolours / Ecthings, Ed. Institut für Auslandsbeziehungen, Stuttgart, 1993 (Catálogo com versão em português do Conjunto Cultural da Caixa, Brasília, 2003). (11) Carlos Vidal, Arnulf Rainer, Más Allá de la representación. Pintar lo imposible, Revista Lápiz, 127, Madri, 1996. (12) “Não se trata de reproduzir o passado, mas de produzi-lo, como um historiador. Uma queda, um choque, uma conjunção arriscada, uma configuração resultante; uma “síntese não tautológica”, como diz muito bem Tiedemann. Não tautológica nem teleológica, vale acrescentar.” Georges Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha, Ed. 34, São Paulo, 1998, pág. 176. (13) Idem, pág. 176. (14) Raúl Antelo, Potências da imagem, Argos Editora Universitária, Chapecó, SC, 2004, pág. 137. (15) Michel Tournier, Celebraciones, Ed. El Acantilado, Barcelona, 2002, pag. 72. (16) Há sinais de um certo sebastianismo no sertão, na redenção cultural ostentada por muitas obras feitas no Nordeste (Glauber Rocha, Ariano Suassuna, poesia de cordel e até em grupos recentes de música popular, como Mestre Ambrósio). A este respeito, pode-se ver Eduardo Lourenço, Mitologia da saudade, Cia. Das Letras, São Paulo, 1999. Nota a. A. Reinhardt, “Vision in arte is not vision. The visible in art is visible. The invisible in art is invisible. The visible of art is visible. The invisibility of art is visible”. |