Marcelo Campos - Alcova
2018
“Estela fora até a porta da alcova da sala resolvida a fechar-se por dentro”. Iaiá Garcia – Machado de Assis
O objetivo desta exposição é configurar, na galeria Laura Marsiaj, uma alcova literária, machadiana, o lugar de criação de um escritor. Assim, sonhos, desejos, erotismos, ilusões e desilusões serão interpretados, buscando ambientes e elementos da casa. Na escolha dos artistas, foram destacados assuntos e objetos que se referissem a sensações de um quarto: aprisionamento, sexo, segredo, ciúmes, beleza, promessas de felicidade. Com isso, máquinas de escrever, camas, ornamentações, louças, mobiliários, paisagem e arquitetura são interpretados em diferentes obras. Na disposição dos trabalhos, a sala é preenchida como num ambiente doméstico, aproveitando diversas alturas e locais da galeria.
De herança luso-árabe, alcova é palavra derivada de “al qubba” (a abóbada) e originalmente ficava em um compartimento superior da casa, “disfarçado”, segundo Günter Weimer, com pé direito baixo. Ali, as mulheres podiam bordar ou se recolher, enquanto os homens recebiam visitas externas ao convívio familiar. Trazemos das casas árabes, rigorosamente fechadas, esta herança que foi reinterpretada ao longo dos séculos. A alcova, então, tornou-se, na arquitetura brasileira, sinônimo de uma modalidade de quarto. O cubo branco, invenção modernista que ainda se impõe como modelo para as galerias de arte, é, na maioria das vezes, uma alcova, uma sala sem janelas. A arte, tal qual na sensação de um sonho, nos leva das alcovas para outros lugares. Nos espera como uma visita, intrusa e familiar.
No vídeo Des-limite, de Waléria Américo, a personagem escapa e retorna à abobada de uma construção eclética na cidade de Fortaleza. Recolhe-se, aceitando o confinamento da alcova, mas, em seguida, parece fugir, numa encenação circular. A arquitetura, como nos explicita Pedro Varela, constrói ilhas, suspensas no tempo e no espaço, concomitantemente misteriosas, vedadas, e simples. Assim vemos James Kudo fazer da casa projectual pintura, utilizando-se de materiais adesivos, iludindo-nos com o escorrido da pincelada. Ao mesmo tempo, tais imagens são brinquedos. Na planta baixa de Leo Videla, a dobradura exalta a beleza geométrica da caixa-cubo e, em seguida, a desauratiza, aproximando-a da reflexão construtiva, singela e densa, de um objeto para montar. Em sentido oposto, retirando a presença da arquitetura, temos a natureza. Renato Bezerra de Mello desenha com nanquim branco sobre diversas camadas de papel transparente. Ali, apaga do Outeiro da Glória quaisquer elementos de civilização, revelando-nos a vegetação e os relevos montanhosos. Mostra-nos, com isso, que não havia de ser loucura o ciúme do mar que Bentinho sentia quando Capitu passava horas com olhar perdido no horizonte.
Na explicitação do aprisionamento e da sensualidade na condição feminina, as alcovas tornaram-se protagonistas. Cenas de mulheres no recamier eram cenas de alcova, acompanhadas por cortinas, leques, criados, flores. Márcia X, Daniel Lannes, Lenora de Barros tratam desta relação entre personagens e objetos-fetiche, a máquina de escrever construindo o poema ao ser lambida; a pinup, imagem recorrente nas alcovas dos cavalheiros, aceitando a ginga do morador da Mangueira, sambando com o parangolé de Helio Oiticica; os kamassutrinhas demonstrando a “filosofia da alcova”, parafraseando o Marques de Sade. Entre brinquedo e mostruário, cama e corpo são zonas de perigo e prazer, incitando voyeurismo e ludicidade. A arte é atenta a tais alcovitices, como vemos no desenho observado pelo buraco da fechadura em Albert Dürer, no Étant Donné de Duchamp e em Blow Job de Andy Warhol.
Ana Miguel poetiza as relações do sono que “entrou com os seus pés de lã e bico calado, e tomou conta da alcova inteira”, tal qual descrito em Esaú e Jacó. Trata, também, da instabilidade de ritos cotidianos, a mala que guarda a ilusão da infância, servindo como casa efêmera, diminuta, quando temos que partir. Esta relação com as miniaturas é fundamental para o entendimento entre arquitetura e subjetividade. O escritório, em tempos pretéritos, era um mobiliário, antes de ser um cômodo da casa. A caixa de música, como no trabalho de Walmor Corrêa, é uma destas miniaturas que encarnavam emoções e afetos aos recônditos do lar.
Ao mesmo tempo, a alcova pretende-se ateliê, literário e artístico. Assim, a exposição se movimenta, como nos sonhos e nas idéias dos criadores, personagens sobem e descem escadas, pássaros encenam vôos, brinquedos praticam sexo e o relógio de Lucas Bambozzi altera a seqüencialidade das horas, marcando a passagem do tempo. Hoje, o ateliê, tal qual o mobiliário, pode ser diminuto, cabendo em malas ou laptops, já que também, conceitualmente, se aproxima tanto do baú de criança guardar brinquedos quanto das maletas de cientistas. Como objeto do ateliê do escritor, a máquina de escrever, de Fabio Morais, torna-se emblemática, tanto por sua obsolescência quanto por sua auratização. Em Escombro, percebemos a fetichização e a falência do objeto-livro. Ruína e devir.
A arte serviu, diversas vezes, para evocar a relação entre arquitetura e subjetividade. Vemos isso na solidão dos ambientes de Edward Hopper e nos quartos de Sophie Calle. Na literatura, Marcel Proust, Machado de Assis e Franz Kafka contribuíram para difundir hábitos e costumes das casas, inventados pelo processo civilizador, e, a partir dos enredos dramáticos, mostrar suas fragilidades. No drama cotidiano, as coisas oscilam, podem ser irônicas ou cruéis, afetuosas ou agressivas. Fora da alcova, dizia-se nos romances, a casa mantinha a sua disciplina.
Isto nos faz crer que na casa, há paredes visíveis e invisíveis. A alcova também nos serve para vedar e abrir janelas. Assim, e por isso, escrevem-se cartas, relatam-se viagens, como nos carbonos apresentados por Renato Bezerra de Mello. A clausura está, concomitantemente, apresentada por Daniel Murgel e Regina Parra e, de certa maneira, negada por Efrain Almeida: “a alma tentou romper todos os elos e voar”. O beija-flor faz do próprio vôo morada, repouso. “A alcova foi uma janela fechada; eu abri outra com o gesto de sair, e respirei”, nos explica Brás Cubas. Brígida Baltar apresenta a parede desnudada, sua alcova-ateliê também foi cerrada até o momento do gesto seminal de cavar buracos, expondo tijolos como se retirasse a maquiagem do tempo. Brígida, da mesma maneira, faz do pó-de-casa padronagens, como papéis de parede ou estofamentos. Há aqui uma sedução pelos salões da Belle Époque, hoje reinterpretados pelo kitsch. Tal fato fica evidente nos bibelôs de Barrão e no Café Morandi de Erika Verzutti. A louça, ícone primordial ao processo civilizador, aparece colada, com acabamento tosco. Entre o inacabado do ateliê e as sobras da casa, Verzutti inventaria os acontecimentos do dia, refaz Dom Casmurro a partir do banal, da descrição sublimada, aproveita o que está à sua volta, transformando o cotidiano em advento memorável, digno, com nos ensina Machado de Assis, de distinção.
Diferente da simplificação da arquitetura brasileira, na Europa criava-se alcovas por dentro dos quartos amplos. Na maioria das vezes, isto acontecia para tornar mais íntimo este cômodo. José Rufino, para a exposição, nos apresenta Timidus, cama de solteiro suspensa, imagem típica da reclusão e do desejo onírico e erótico. Na característica da madeira, a austeridade da casa-grande. Tiago Carneiro da Cunha nos oferece outro emblema da alcova e da solidão, o cinzeiro, memento mori, ironia sobre a finitude. O tempo, segundo Norbert Elias, é uma segunda natureza, tanto quanto os hábitos civilizatórios que parecem seculares, mas muitas vezes são tradições inventadas.
Solitários, podemos, na alcova, refletir sobre os objetos da civilização. Percebemos, claramente, que a obra de arte, ainda que mude as coisas de lugar, justificando a existência da subversão, derrama generosamente “pela casa todas as sobras de vida” que tem em si.