Leonor Amarante - Cartas Universais
2004
Uma retrospectiva em Curitiba dimensiona a força da obra de José Rufino, que faz de universos pessoais a base para uma discussão sobre as angústias do homem.
Quando os prestigiados críticos europeus Pierre Restany e Aquille Bonito Oliva consideraram a obra de José Rufino a melhor na 6a Bienal de Havana, em 1997, a escolha informal não surpreendeu. Em 1989, o artista inicia uma produção conceitualmente sofisticada, permeada por questões político-psicanalíticas, tendo como ponto de partida um elemento familiar, corriqueiro: as cartas trocadas por seu avô, senhor de engenho, com personagens de um universo quase colonial, movido pelo poder, por riqueza, amor e ódio. A abrangente mostra que está agora no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, com curadoria de Moacir dos Anjos, faz parte de um projeto do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, o MAMAM, de Recife, e dá a dimensão da densidade da obra de Rufino que, sem sair de sua cidade natal, João Pessoa, tem tido reconhecimento internacional.
No inicio de sua trajetória, José Rufino, aparentemente, tentava exorcizar fantasmas que, em décadas passadas, moviam um sistema que determinava o que era e quem era bom ou mau para a “sociedade”. Seu discurso, no entanto, muito mais amplo, fazia-o discutir outras heranças e conceitos de vida que se sobrepunham à estreita ligação entre o homem, seu legado cultural e o entorno. O achado familiar tornou-se fio condutor para uma inteligente reflexão sobre o ser humano, seus limites, heranças e impossibilidades. Esse ponto de partida nos introduz a uma cartografia muito particular, em que fragmentos de uma intensa e profícua correspondência se transformam em suporte para pinturas, desenhos e pequenas instalações, todas com forte expressão critica. A transfiguração poética do mundo e suas utopias estão cristalizadas em Lacrymatio (1991-1997), instalação em que cartas pintadas, montadas sobre placas de acrílico e unidas por tubos de borracha, nos lembram os instrumentos de tortura usados pela repressão durante a ditadura militar.
Rufino trabalha, simultaneamente, em várias frentes, consciente de que a historia da cultura brasileira passa pela arqueologia, antropologia, etnologia e, sobretudo, pela política. Da vanguarda trabalhista das docas da capital gaúcha, ele recolheu o entulho burocrático, guardados durante décadas, nos decadentes escritórios da alfândega, para criar Laceratio, exposto na 2a Bienal de Artes Visuais do Mercosul, em 1999. Nessa instalação, trabalhou têmperas sobre os documentos portuários que foram abraçados por carimbos e fios, uma analogia às amarras de um mundo burocrático ainda muito presente no cotidiano dos trabalhadores.
Uma das obras mais contundentes do artista e que dá força a esta exposição é Plasmatio, 2002, emblemática de uma produção que mantém o caráter político, sem jamais cair no panfletário. Composta por um conjunto de cartas, bilhetes e documentos de ex-prisioneiros políticos do regime militar, a instalação oculta e revela simultaneamente o isolamento, a perda, a revolta e o desprezo. As imagens pintadas sobre os textos sugerem corpos mutilados. Mesmo que o espectador tente decifrar a mensagem contida nos papeis, não consegue. O que fica na superfície do papel são novo códigos, mais universais, que completam os anteriores e plasmam nesse território inventado.
A arte de Rufino esta em permanente expansão. O recorte preciso, desenhado por Moacir dos Anjos, nos mostra um caminho repleto de situações poéticas e nos revela a preocupação solidaria do artista com o homem de todos os séculos, unidos em tempos de incertezas, angustia e solidão.
Texto de Leonor Amarante, revista Bravo! 7:78, p. 95
Exposição de José Rufino no Museu Oscar Niemeyer, 2004