Textos

Marcelo Campos - Nausea
2018

"Os objetos não deveriam nos tocar, já que não vivem. Utilizamo-los, colocamo-los em seus lugares, vivemos no meio deles: são úteis e nada mais. E a mim eles tocam – é insuportável". A constatação do protagonista de A Náusea, romance de Jean Paul Sartre, serve-nos com justeza para observação sobre o trabalho de José Rufino. Seus objetos nos colocam, enquanto espectadores, à espreita, observando mobiliários que apresentam uma certa estranheza. Também como na estratégia dos textos de Kafka, Rufino atua com olhar insistente sobre as coisas até torná-las tocantes, instigantes, estranhas a ponto de dialogar conosco como um corpo subjetificado, vivo e pulsante. Assim acontece com gavetas, escrivaninhas, fichários, arquivos. Ao agrupá-los, forma-se um aglomerado com arestas, pontas, lacunas, aberturas, vãos.

Em NAUSEA, o conjunto de armários, gavetas, escrivaninhas, ganha diversos predicados. Sim, como na construção de uma frase. Os móveis de metal característicos de ambientes regulares como repartições e instituições públicas perdem sua regularidade. Tornam-se deslocados por não mais assumirem função convencional. "O que se pode temer num mundo tão regular?", nos indaga Sartre. A aparente tranqüilidade destes ambientes institucionais é ameaçada por ações e gestos que nos fazem observar a engrenagem da arte. A grandiosidade da obra de Rufino reside em não aceitar as manobras óbvias e regulares. Os armários são sucateados, das gavetas surgem papéis manchados, os desenhos são feitos sobre documentos originais.

O ambiente da instalação ativa um caráter expressionista, das coisas nascem imagens fantasmáticas, espirituais. Uma das veredas da arte contemporânea, segundo Hal Foster, é a recodificação do expressionismo do início do séc. XX. Aqui, Rufino situa-se na contemporaneidade. Porém, na busca da expressividade dos objetos, o artista apresenta "imagens roubadas e montadas". A obra apropria-se de objetos rabiscados, arranhados, enferrujados pela ação natural do tempo e do homem. Rufino, então, subverte o vínculo expressionista de gestualidade imediata, como em pinturas anteriores, deixando o gesto para um outro: o desconhecido. Este anonimato na aparência dos armários os espiritualiza. Criam-se fantasmas. Rufino acentua a estranheza. Preenche-se o vazio, as lacunas, com manchas fluidas. As gavetas abrem-se em línguas, corporificando-se. Do escuro surgem desenhos guardados. Em têmpera sobre documentos, os desenhos são compostos de imagens duplicadas em tons encarnados e sépia. Assemelham-se a lâminas, cortes com informações biológicas. Das manchas, cabem ao espectador as atribuições figurativas. Confundimo-nos com imagens pré-existentes e novas. Lemos números (141607), códigos, assinaturas. Frases como “apresentamos os materiais abaixo”. Do que tratam tais papéis? Qual o assunto administrativo? A atmosfera é sigilosa.

A posição das gavetas, abertas, semi-abertas e fechadas cria uma espécie de respiração e ritmo para a instalação. A náusea, como sentimento corporal, vem gradativamente em espasmos. No ato do expurgo, revelamos o interior privado, as secreções fluidificadas. Mas, este “gesto espontâneo” se tornara um “signo reificado". Aqui tratamos de ficções e interpretações. A expressão não pertence a ninguém em particular. A arte apenas compartilha, deflagra uma experiência com os que aceitam o jogo. Não há caráter documental, perde-se a história, o real e o sujeito. Rufino toma os objetos e a partir disso os acentua, como nas palavras. Destacam-se tonicidades, reverberações, agudizações. As palavras mudam de sentido até se tornarem impronunciáveis. A frase, agora, é estrangeira para nós e para o próprio artista. Os móveis ganham funções sem funcionalidades.

"É preciso não colocar estranheza onde não existe nada", afirmara Sartre. NAUSEA utiliza esta afirmação às avessas, estranhando o banal, banalizando a estranheza.

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