Neusa Mendes - Crônica do universo local
2001
Exposição de José Rufino em Vila Velha perscruta o passado de um espaço e cria identidades imaginárias
Formado em Geologia, José Rufino, descendente da tradicional sociedade agrária paraibana, é professor de Paleontologia e pesquisador atuante da Universidade Federal da Paraíba. Hoje, ele se define como um paleontólogo que trabalha com investigação plástica. O seu ingresso nas artes plásticas aconteceu em meados dos anos 80 e, a partir dai, constam do seu currículo importantes exposições e premiações, inclusive o convite para a próxima Bienal de São Paulo. A recepção de sua obra no Brasil e no exterior atesta a sua vocação universal, tornando-o uma das principais referências da novíssima arte brasileira.
As instalações propostas por Rufino são imersões na ancestralidade, na origem, na continuidade, na tradição na temporalidade do local onde expõe, sempre interagindo com as referências simbó1icas, físicas e arquitetônicas que ele encontra durante o período de preparação de suas obras, remexendo nos fragmentos dessas histórias, nas varias regiões do saber que transcende a narrativa - essa é a condição singular de sua obra. A partir daí, pode-se tentar descobrir como essa estrutura subjetiva se reflete na sua produção e ver como o artista constrói seu repertório.
A exposição que José Rufino apresenta no Museu Ferroviário Vale do Rio Doce, em Vila Velha, no Espírito Santo, sob curadoria de Luiz Camillo Osório, reúne um conjunto de obras impactantes, especialmente produzidas para esse museu, uma antiga estação de trem que fica na margem esquerda da baia de Vitória. Desativada desde a década de 60, foi restaurada no fim dos anos 90. Essa estação se tornou um centro referencial da memória da ferrovia que liga Vitória a Minas Gerais, emergindo como um novo pólo cultural. Explorar o caráter desse local, encarnando o mecanismo inerente à memória, foi o ponto de partida para a elaboração das obras. Foram dias viajando de trem, percorrendo outras antigas estações, entrevistando funcionários aposentados, apropriando-se de reminiscências, vasculhando um imenso e meticuloso aparato de objetos: malas, caixas de ferramentas, velhas peças de mobiliários e documentos do arquivo morto da Companhia Vale do Rio Doce, tornando esses rastros, ruídos e murmúrios, antes guardados e lacrados, em visíveis e palpáveis. Tal atitude parece determinar uma atividade especulativa da vida e do mundo.
As causas da ação na obra de Rufino são a ausência, o esquecimento, a suspensão do tempo, e o que resultam daí são efeitos de sentidos com os quais podemos nos identificar. Esses sentidos estão contidos numa constelação de tramas que conectam o passado com o presente e com o que deles emanam, criando identidades imaginárias com uma entrevisão de eternidade. Os objetos escolhidos pelo artista, a meu ver, são paradigmáticos e permitem uma compreensão ampliada dos seus significados. Ao agrupá-los, José Rufino confirma a sua existência no tempo e no espaço.
É impossível não parar para refletir sobre as raízes e o impacto de sua obra. Na nítida decisão de investigar a história do local e sobre os relatos burocráticos portadores de memórias e testemunhos de uma crônica cotidiana, as manchas de monotipias de Rufino como que se transfiguram nas pranchas psicanalíticas de Rorschach.
Essa e uma exposição válida para qualquer lugar do mundo.
Neusa Mendes
(texto da revista Bravo 4:47, p.47, sobre Murmuratio. Mostra no Museu Ferroviário Vale do Rio Doce, Vila Velha, 2001)